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Exibição “J.R.R. Tolkien: The Art of the Manuscript”

De 19 de agosto a 23 de dezembro de 2022 ocorre, em Milwaukee, WI (EUA), a exibição “J.R.R. Tolkien: The Art of the Manuscript”, ou, em tradução livre: “J.R.R. Tolkien: A Arte dos Manuscritos”, na Universidade de Marquette.

O objetivo desta exibição, segundo o site oficial, é “observar o trabalho de Tolkien através da ótica dos manuscritos, tanto em termos dos materiais que Tolkien estudou como filólogo medieval quanto dos manuscritos que ele mesmo criou enquanto desenvolvia seus escritos sobre a Terra-média”.

A exibição foi desenvolvida pelas Bibliotecas Raynor Memorial, da Universidade de Marquette, em conjunto com o Museu de Arte Haggerty, e os curadores são o Dr. William M. Fliss, que é o Arquivista de Tolkien na Marquette, e a Dra. Sarah C. Schaefer, e conta com 147 itens em exibição. Além do acervo da própria Marquette, a exibição contém itens emprestados das Bibliotecas Bodleian, em Oxford.

A relação entre Tolkien e a Universidade de Marquette é antiga e data dos anos 1950. Tudo começou quando William B. Ready, diretor de bibliotecas da Universidade, entrou em contato com o Professor Tolkien, perguntando se ele não tinha interesse em vender seus manuscritos de O Hobbit e O Senhor dos Anéis, que já eram um grande sucesso na época. Isto deixaria o acervo da recém-construída biblioteca Memorial em ótima situação, e Ready soube aproveitar bem o momento. Tolkien aceitou a proposta, e vendeu os manuscritos por 1.500 libras esterlinas. Os primeiros pacotes começaram a chegar na Universidade em 1957. Mais tarde, outros itens que estavam faltando foram enviados por Christopher Tolkien. No total, a coleção inclui manuscritos originais e vários rascunhos para três dos livros mais famosos do autor, O Hobbit (1937), Mestre Giles D’Aldeia (1949) e O Senhor dos Anéis (1954-1955), bem como a cópia original do livro infantil Sr. Boaventura (publicado em fac-símile em 1982).

 

 

Eu tive o privilégio e a oportunidade de ir nesta exibição no dia 20 de agosto de 2022. A entrada é vendida de forma online e custou 10 dólares para duas horas de visitação, previamente agendadas. Não era permitido filmar ou bater foto dos itens exibidos, mesmo sem flash, mas vou descrever aqui como foi. Logo na entrada (antes da exibição em si), há um painel explicativo, preparando os visitantes para o que está por vir:

 

 

“Hoje, a palavra “manuscrito” geralmente carrega dois significados. Por um lado, refere-se a um documento escrito à mão e é frequentemente usado para descrever obras criadas antes do advento de técnicas modernas de impressão. Por outro lado, denota uma versão de rascunho de um texto finalizado (seja à mão ou digitado).

Manuscritos – em ambos os sentidos – são uma esclarecedora faceta da obra de John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), professor de Oxford mais lembrado como o autor dos amados clássicos O Hobbit e O Senhor dos Anéis.

J.R.R. Tolkien: The Art of the Manuscript toma como ponto de partida a ideia do manuscrito como influência no processo criativo de Tolkien. Como estudioso de línguas e literatura do inglês antigo e médio, o Professor Tolkien se envolveu com manuscritos medievais ao longo de sua carreira acadêmica. Esse engajamento também é evidente em sua ficção. Dentro do legendário de Tolkien – seus escritos conjuntos sobre a Terra-média – os manuscritos são frequentemente objetos narrativos centrais. Exemplos-chave incluem o Livro de Mazarbul, a crônica dos Anãos que a Sociedade do Anel descobre em Moria, e o Livro Vermelho do Marco Ocidental, que contém as memórias conjuntas de Bilbo e Frodo Bolseiro.

Como criador de um mundo secundário complexo e crível, Tolkien passou décadas desenvolvendo material que formaria o pano de fundo de suas histórias. Seus manuscritos para O Hobbit e O Senhor dos Anéis, que são mantidos pelas Bibliotecas Raynor Memorial da Universidade de Marquette e formam o núcleo da exposição, revelam muito sobre a evolução destas histórias. Empréstimos dos arquivos de Tolkien das Bibliotecas Bodleian da Universidade de Oxford complementam os objetos de Marquette. Todos eles são posicionados em conformidade com pontos-chave de influência que esclarecem a produção de Tolkien e seu contexto mais amplo.” (tradução livre)

Muito além de expôr os manuscritos originais do autor, a exibição conta uma história – a relação de Tolkien com manuscritos medievais e o impacto disto em sua obra. O primeiro tema exibido, por tanto, chama-se “Rooted Works” [Trabalhos Enraizados].

 

O primeiro manuscrito que vemos, abrindo a exibição, não é de Tolkien; e sim um fac-símile de Beowulf (na versão editada por Julius Zupitza e publicada em 1882), poema anglo-saxão que deixou uma grande marca no Professor. O épico foi uma das maiores influências de Tolkien, não apenas para a escrita do legendário, mas o seu trabalho acadêmico também inclui um ensaio e uma tradução deste poema. Tolkien muito provavelmente não leu o manuscrito original – que encontra-se atualmente na The British Library – e sim livros editados por acadêmicos, tais como a de Zupitza. A exibição também conta com o fac-símile de outra edição de Beowulf, esta por Grímur Jónsson Thorkelín e Kemp Malone. Em seguida (agora sim…), entramos em contato com os primeiros manuscritos de Tolkien da exibição: uma página datilografada contendo o começo da tradução em prosa de Beowulf, uma outra página escrita à tinta e à lápis contendo um trecho da tradução com letras Fëanorianas, e uma terceira contendo a famosa aquarela de dragão que Tolkien fez, representando o monstro do poema. Estes itens foram cedidos pelas Bibliotecas Bodleian.

 

 

Para saber mais sobre a relação entre Tolkien e Beowulf, confira nosso vídeo sobre o tema:

 

 

Em seguida, temos o advento da fotografia como uma ferramenta para fazer cópias de manuscritos, especialmente as com gravuras e iluminuras. Aqui somos apresentados a alguns fac-símiles e manuscritos de autores como H. Rider Haggard e William Morris contendo letras ornamentais, gravuras e diversos outros elementos gráficos.

O próximo tema da exibição, que conversa bastante com a questão gráfica, chama-se “Records of Ancient Days” [Registros dos Dias Antigos]. Aqui encontramos a criatividade de Tolkien em elaborar seus próprios fac-símiles dentro do legendário. Somos apresentados a diversos manuscritos deste assunto, tais como: a carta do Rei Elessar a Samwise Gamgi (que falamos tudo sobre neste vídeo); a capa do livro O Hobbit; a carta que Gandalf deixou a Frodo em Bri; e muitos outros. Mas o grande destaque certamente são os fac-símiles para o Livro de Mazarbul, o registro da colônia de Balin em Moria e que é encontrado em situação deplorável pela Comitiva do Anel em “O Senhor dos Anéis”. Tolkien deu-se ao trabalho de criar páginas deste livro que soassem autênticas, e foi ao extremo de fazer rasgos, queimaduras e manchas de sangue para que este efeito fosse alcançado.

 

 

Outro manuscrito de destaque nesta seção é um rascunho à mão de “O Senhor dos Anéis”. É possível visualizar no canto inferior direito uma mancha causada pelas lágrimas de J.R.R. Tolkien! Em uma carta de 1962 a sua tia Jane, ele diz: “Eu me lembro de borrar as páginas (que agora representam as boas-vindas de Frodo e Sam no Campo de Cormallen) com lágrimas enquanto escrevia”.

 

 

Ainda neste assunto, a parte III da exibição chama-se “Fair Letters” [Letras Belas]. Como o próprio nome diz, somos apresentados a toda forma de letras feitas pelo Professor. A semelhança entre os escritos de Tolkien e os escritos medievais é extraordinária: a utilização de fontes ornamentais, letras cuidadosamente desenhadas e a forma de escrita causa uma associação imediata entre uma coisa e a outra; obtém-se todo o impacto da inspiração do autor. Aqui destaca-se o Portão de Moria e o poema do Anel.

 

 

A parte IV chama-se “Old Times and Distant Lands” [Tempos Antigos e Terras Distantes]. Aqui temos uma das facetas de Tolkien que o torna tão único entre os escritores modernos: a energia que ele despendeu em meticulosamente fazer mapas, genealogias, anais e tabelas de cronologia, tais como o registro das fases da lua em cada momento de O Senhor dos Anéis. Estes elementos aumentam a imersão e a profundidade histórica da obra. Como não poderia ser diferente, Tolkien possivelmente se inspirou em manuscritos da Idade Média, tais como o “Peterborough Chronicle”, um registro de acontecimentos do século IX durante o reinado do Rei Alfredo, o Grande. Mas além das fontes medievais, a familiaridade com mapas também pode ser compreendida no contexto da sua experiência como Oficial de Sinais durante a Primeira Guerra.

Os itens exibidos aqui incluem uma grande variedade de árvores de genealogia e tabelas cronológicas, esquemas-resumo contando rapidamente o que cada membro da Sociedade do Anel estava fazendo em cada dia específico. Simplesmente fascinante!

 

 

Encerrando, a parte V chama-se “Glimpsing Other-worlds” [Vislumbrando Outros Mundos]. Separar os manuscritos de Tolkien entre “texto” e “visual” seria um erro, já que estes dois elementos estão profundamente conectados. Em parte, devido às suas próprias fontes de inspiração também não terem essa linha claramente delineada. Apesar disso, houve momentos em que Tolkien trabalhou primariamente com elementos visuais, que são destacados nesta parte da exibição: heráldicas, representando casas e personagens; desenhos diversos com o tema de árvores e flores; e até tapetes númenoréanos. Para referência, somos apresentados, entre outros, a ilustrações de William Morris e Owen Jones, ambos do século XIX, que imitam uma estética medievalista.

 

 

O último item é a belíssima aquarela “Bilbo comes to the Huts of the Raft-elves” [Bilbo chega às cabanas dos Elfos-balseiros], reproduzida nas edições de O Hobbit.

 

 

Ao fim da exibição, a experiência é encerrada com chave de ouro com uma pequena amostra do novíssimo sistema ANDUIN™ (o nome do Grande Rio da Terra-média). Este sistema visa digitalizar e catalogar todos os manuscritos de Tolkien dos arquivos da Universidade, com indexação avançada de palavras/frases, que vai permitir rastrear a evolução de um trecho específico, encontrando as suas ocorrências dentro dos diversos textos de diferentes épocas, facilitando bastante o trabalho dos acadêmicos.

Dois computadores com ANDUIN™ foram disponibilizados para serem utilizados pelos visitantes. De forma a facilitar a experiência, eles foram pré-configurados com algumas frases da obra, e eu pude escolher uma delas e visualizar toda a sua evolução nos manuscritos, as suas diferentes versões, de forma fácil e didática. O sistema apresenta todas as ocorrências da frase determinada, em ordem cronológica, e ao selecionar uma destas ocorrências, a página digitalizada em alta qualidade do manuscrito é apresentada, com a frase em questão destacada. Prevejo grandes trabalhos tolkienianos sendo feitos a partir das informações fornecidas pelo ANDUIN™!

A fim de comparação, também estava disponível aos visitantes a forma tradicional de consulta: a microfilmagem! É importante ressaltar que hoje em dia pouquíssimos estudiosos realmente veem ou tocam um manuscrito original. A grande maioria das consultas é através das captações fotográficas. De qualquer forma, o trabalho é enormemente manual; é da capacidade do próprio pesquisador de navegar entre os papéis, ou as microfilmagens dos papéis, e realizar suas próprias conexões, coisa que será automática com o ANDUIN™. Mas foi bem legal e divertido utilizar também os equipamentos de visualização de microfilmagens que estavam lá.

Por fim, um livro-catálogo foi lançado pela Universidade de Marquette, que reproduz a lista completa dos objetos exibidos e inclui ensaios introdutórios dos co-curadores da exposição. Ele pode ser adquirido no local ou online através do link (https://shophaggerty.com/product/j-r-r-tolkien-the-art-of-the-manuscript-catalog-softcover-second-edition/) para entregas dentro dos EUA , ou entrar em contato diretamente por e-mail ( mary.dornfeld@marquette.edu ) para compras internacionais; a edição em capa dura esgotou-se, e no momento há uma segunda edição em brochura, com prefácio de Simon Tolkien.

 

 

Mais informações:

https://www.marquette.edu/haggerty-museum/tolkien.php

https://www.marquette.edu/library/archives/Mss/JRRT/about.php

A hobbit mais astuciosa da Quarta Leste é uma das apresentadoras do canal e responsável pelo nosso Twitter.