Após a publicação do Hobbit e do Senhor dos Anéis – respectivamente em 1937 e 1954-55 – os leitores das obras de fantasia de J.R.R. Tolkien ficaram ansiando por mais informações sobre o mundo sub-criado pelo autor. Tiveram de esperar mais 22 anos, até que em 1977 saísse O Silmarillion, obra póstuma editada por Christopher Tolkien, herdeiro e executor literário do pai, em trabalho conjunto com o autor de fantasia Guy Gavriel Kay.
Essa obra representa – na linha de transmissão fictícia que faz de JRRT um mero tradutor de tradições antiquíssimas – um amálgama de textos élficos e humanos que narram desde o mito da criação do mundo até os eventos da Guerra do Anel. Sabe-se que é enorme a quantidade de textos prontos e semi-prontos, rascunhos e anotações legada por Tolkien, e já naquela época os leitores sabiam que nem de longe O Silmarillion representava tudo o que fora escrito sobre esses temas, e que os editores – Christopher principalmente – tiveram que realizar um extenso trabalho de escolha entre textos às vezes divergentes e escritos em diversas fases da vida de Tolkien, com as necessárias decisões editoriais, cortes e adaptações.
Lendo O Silmarillion, ficamos sabendo – nós, tolkienistas – que a “Terra-média”, nome que damos informalmente ao mundo tolkieniano, é apenas um continente no Mundo Secundário, mundo esse que as tradições chamam de Arda.
Já se passaram 45 anos desde que O Silmarillion chegou às prateleiras, e nesse meio-tempo foi publicada a obra monumental The History of Middle-earth [A História da Terra-média], em 12 volumes contendo (nem todos) os rascunhos e versões anteriores da sub-criação do Mundo Secundário tolkieniano.
Escreveram-se ademais diversos livros sobre o processo criativo de Ronald Tolkien e a ação editorial de seu filho. Uma dessas obras é Arda Reconstructed [Arda Reconstruída] de Douglas Charles Kane, um autor que, pelas suas qualificações profissionais (é advogado especializado em discriminação e assédio no ambiente de trabalho), não pareceria a pessoa mais adequada para escrevê-la.
Porém, considerando que ele é antigo estudioso das obras de Tolkien, ele adquiriu uma familiaridade espantosa com o assunto. O livro consiste em análises detalhadas das fontes de cada capítulo do Silmarillion, parágrafo por parágrafo e às vezes frase por frase, com base em The History of Middle-earth, evidenciando as decisões que Christopher Tolkien tomou – algumas boas, outras nem tanto – em cada trecho da narrativa.
A leitura de Arda Reconstructed é densa, já que as referências muitas vezes são complexas e que o próprio Tolkien muitas vezes mudou de ideia sobre genealogia dos personagens, motivações e sequência cronológica, e muitos outros aspectos. Que sirva de exemplo a variedade de grafia dos nomes próprios, com alguns casos críticos, que devem ter demandado muito bom-senso do editor: As Montanhas de Sombra, Ered Wethrin nas obras publicadas, foram grafadas por JRRT como Eryd-wethrin, Eredwethrin, Ered-wethrin, Erydwethrin, Erydwethion. O nome do Vala Lórien aparecia como Lorien, Lorin, Lorion, Lorinen, Lóriën. O morro onde cresciam as Duas árvores – Corollairë no Silmarillion publicado – consta dos textos-fonte como Korlairë, Korolairë, Corolairë, Korollairë. Essas divergências podem parecer meros detalhes de grafia até que se perceba que Maeglin, o elfo de Beleriand, já se chamou Glindûr; Aredhel, irmã de Turgon, foi Írith ou Isfin; e a própria Vingilot, a nau de Eärendil, se chamou Eälotë em textos mais antigos.
Em alguns casos, Kane critica decisões de Christopher (consideremos Kay como um mero coadjuvante) que contrariam a intenção explícita do pai. Diversos textos que só acabaram sendo publicados em The History of Middle-earth poderiam ter aparecido como apêndices do Silmarillion, por exemplo relatos mais detalhados dos Grandes Contos – as histórias dos Filhos de Húrin, de Beren e Lúthien e da Queda de Gondolin, publicados muito mais tarde como livros independentes – e até de um possível quarto Grande Conto, a Ascensão da Estrela, a história de Eärendil.
Também poderia ter sido incluída a obra Athrabeth Finrod ah Andreth, o diálogo de Finrod Felagund com a humana Andreth, que trata das consequências da morte e da imortalidade no Mundo Secundário, e sobre a qual Tolkien deixou uma instrução explícita para incluí-la na obra a publicar.
Kane classifica em cinco categorias as alterações feitas por Christopher nos textos do pai durante o processo que resultou no Silmarillion publicado.
- Redução da importância das personagens femininas. Pelo menos oito personagens tiveram seu papel decisivamente diminuído em função das alterações editoriais: Uinen, Galadriel, Míriel, Nerdanel, Indis, Ungoliant, Arien e Nellas. Ademais, foram removidas as duas ou três filhas de Finwë e Indis; Beleth, irmã mais velha de Baragund e Belegund; e Andreth, do diálogo Atrabeth. Algumas dessas omissões são explicáveis ou justificáveis, outras nem tanto.
- Eliminação de grande parte das especulações filosóficas contidas na obra. Foram removidas muitas referências ao minguar dos elfos e à sua imortalidade. Mais uma vez o Atrabeth faz falta, assim como a história estendida de Finwë e Míriel. Por muito que esses temas tenham sido publicados na History e nos Contos Inacabados, ainda assim teriam tornado o Silmarillion muito mais completo e coerente.
- Condensação ou eliminação de partes importantes da narrativa. Assim, quando as Silmarils são raptadas por Morgoth é originalmente Maedhros quem dá a notícia do roubo e da morte de Finwë; isso confere ao relato, e à consequente reação de Fëanor, um tom imediato e pessoal que está ausente do texto publicado. A história de Tuor e da queda de Gondolin, um dos três Grandes Contos que servem de suporte a toda a mitologia, sofreu uma compressão maior que os outros dois Contos, apesar de funcionar como clímax anunciado durante grande parte da narrativa.
- Re-criação da história da ruína de Doriath. Esta é a grande invenção editorial da obra. Em The War of the Jewels [A Guerra das Jóias], volume 11 da History, Christopher confessa que essa passagem foi alterada fundamentalmente, assumindo uma forma para a qual não existe nenhuma autoridade nos escritos do pai. Em nenhum lugar Ronald Tolkien relatou que os Anãos criaram um grande colar para Finrod – chamado Nauglamîr ou com qualquer outro nome – ou que algum “Colar dos Anãos” existisse antes daquele (feito para Thingol) contendo a Silmaril conquistada a Morgoth por Beren e Lúthien. A solução de Christopher, para evitar a invasão de Menegroth por um exército hostil, uma vez que a fortaleza estava protegida pelo poder de Melian, foi colocar os Anãos já em seu interior, ocupados com outros trabalhos. A morte de Thingol dentro de Menegroth contradiz a ideia de Tolkien, de que o rei seria atraído para fora do Cinturão de Melian e assassinado ali.
- Remoção dos contextos das histórias. Tolkien pretendia que alguns dos contos fossem relatados pelo elfo Pengoloð ao navegante humano Ælfwine, que em suas viagens alcançara Tol Eressëa, e que partes da mitologia resultassem de relatos élficos e mitos humanos transmitidos pelos númenóreanos. Essa história textual fictícia perdeu-se na condensação editorial. Isso é de se lamentar, pois os contextos teriam reforçado a impressão de uma tradição antiga, compilada de muitas fontes, que Tolkien estaria apenas recontando aos leitores contemporâneos, e não criando.
Apesar de Arda Reconstructed ser, como foi dito, uma obra densa, repleta de referências à monumental History of Middle-earth, o livro vale a pena ser explorado para obter uma perspectiva da multiplicidade de fontes que Christopher Tolkien compilou e das decisões editoriais, quase sempre difíceis e muitas vezes inevitáveis, que precisou tomar para montar O Silmarillion que temos em mãos.
Vale lembrar que ele próprio declarou que se arrependeu de muitas dessas decisões, que resultaram em uma obra menos complexa e completa do que poderia ter sido.