Mîm foi um dos últimos ananos-miúdos (Noegyth Nibin). No ano 486 da Primeira Era, foi aprisionado pelos homens do bando de Túrin Turambar. Salvou a vida levando-os à sua morada nas cavernas de Amon Rûdh. Juntamente com seu filho Ibun, ficou por um ano com os proscritos. No inverno de 487, salvou-se de um ataque de orques revelando a estes a localização de Bar-en-Danwedh, que os homens haviam estabelecido em Amon Rûdh. Na batalha que se seguiu, Túrin – que àquela altura se tornara amigo de Mîm – foi aprisionado e levado vivo a Angband. Em 501, depois que Nargothrond foi abandonada por Glaurung, Mîm ali se estabeleceu, e ali foi morto por Húrin em 502, em vingança pela traição contra Túrin.
Acerca da entrada de Mîm nos Grandes Contos, vide o capítulo “Sobre Mîm, o Anão” em Os Filhos de Húrin (ed. HarperCollins Brasil, 2020).
Descrevendo o estado de espírito do anano-miúdo em relação aos humanos, Tolkien compôs o poema The Complaint of Mîm the Dwarf [A Queixa do Anano Mîm], cujo paradeiro se desconhece. Porém a editora Klett-Cotta, responsável pela publicação dos livros de Tolkien na Alemanha, publicou 35 anos atrás a obra Das erste Jahrzehnt 1977-1987: Ein Almanach [O Primeiro Decênio 1977-1987: Um Almanaque], contendo uma tradução para o alemão do poema e de um subsequente trecho em prosa – Mîms Klage [A Queixa de Mîm]. O tradutor foi Hans J. Schütz; o livro foi distribuído apenas a livreiros e amigos da editora.
O texto que se segue é uma retradução a partir do alemão. Assim sendo, deve ser lido apenas como uma paráfrase, da qual se pode depreender o sentido do original inglês, mas não seus detalhes vocabulares, estilísticos e semânticos. Servirá no máximo – enquanto o original não surgir e for publicado – como um guia daquilo que J.R.R. Tolkien quis nos contar sobre tão singular personagem.
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Sob uma montanha, em terra agreste,
havia funda caverna repleta de areia.
Ao anoitecer estava Mîm diante de sua morada:
seu dorso era curvado e sua barba grisalha;
caminhara por longas sendas, inóspitas e frias,
o pequeno anano Mîm, com duzentos anos de idade.
Tudo o que criara, a obra de suas mãos,
com buril e formão, em labor infindo,
inimigos lhe roubaram; e só sua vida e alguns objetos
do ofício lhe restaram, e longa lâmina
na bainha sob o manto esfarrapado, e era envenenada.
Piscava os olhos turvos, inda vermelhos pela fumaça;
pois, entulhando-os com espinhos e urze, ainda tinham
cruelmente incendiado seus corredores,
e assim saiu ele, sufocado e quase a vomitar.
Mîm cuspiu na areia e então começou a falar:
Tim-tim-tim, tim-tom, tom-tom, tim!
Sem tempo para comer, sem tempo para beber, tom, tim!
Tim-tom, sem tempo, tom-tim, sem tempo para demorar!
Sem tempo para dormir! Sem noite e sem dia, somente pressa!
Só prata e ouro, martelados e dobrados na forma,
e pedrinhas duras, reluzentes e frias.
Tim-tim, verdes e amarelas, tim-tim, azuis e brancas:
Sob minhas mãos brotaram e cresceram devagar
longas folhas e flores, e olhos rubros brilharam
em animais e aves entre os ramos e flores.
Todas as coisas que meus olhos haviam visto quando ainda eram límpidos, quando eu ainda era jovem e o mundo era amigável. Como me rebaixei para as tornar mais duradouras que a lembrança! E elas me brotavam do coração e se curvavam sob minhas mãos, dobravam-se e se juntavam em formas singulares e belas – sempre crescendo e mudando, e no entanto sempre enraizadas na memória do mundo e em meu amor por ele. Então, certo dia, detive-me por um instante e ergui a cabeça, e minhas mãos repousaram na bancada de pedra. Contemplei minha obra. Pois ela crescera de Mîm, porém não era mais Mîm, e ele se admirou dela. Jóias divisei, brilhando à luz de meu pequeno fogo de forja, e agora elas jaziam em minha mão morena, que era velha, mas ainda delicada e hábil. E pensei: Mîm foi muito sábio. Mîm trabalhou com muito afinco. Mîm tinha em si um fogo mais quente que a forja. Mas Mîm o deixara fluir quase todo para dentro daquelas coisas. Elas são parte de Mîm, pois sem elas não sobraria muito dele.
Assim, pois, imaginei um modo conveniente de guardá-las, como objetos em um depósito, para que a memória sábia as reencontrasse. Pois jaziam em toda a parte, no solo ou empilhados nos cantos, e muitos pendiam de pinos nas paredes – como as páginas de um velho livro com histórias dos ananos, carcomido pelos tempos e devastado pelos ventos.
Clac-clic-zás! Crás-tap, tam-tam-tap! Tac-tac! Que venham madeira e ossos! Sem perda de tempo. Começar a obra. Pensar, serrar, entalhar, burilar, limar, pregar. Sem tempo de descansar. Assim fiz minha grande arca, provida de compartimentos e gavetas secretas. Dragões vigias fitavam da tampa, enrodilhados e se erguendo pelas afiadas garras. As dobradiças estavam postas entre seus dentes afiados. Velhos ananos com machados estavam de pé junto à poderosa fechadura. Clac-clac, tac-tac! Martelo e pregos, tim-tom, a chave foi forjada e amarrada com magia. Eia! fechou-se a grande tampa e também meus olhos exaustos. Por muito tempo dormi, de cabeça deitada sobre minha arca do tesouro, meu repositório de lembrança e anos esvoaçados.
Dormi por muito tempo? Não sei quanto tempo se passou. O fogo da forja se apagara, mas uma fumaça sufocante me fez sobressaltar. Vieram homens e roubaram tudo o que eu possuía: o minério que há muito tempo eu extraíra das rochas, os montículos de pedras preciosas; e carregaram consigo minha arca. Expulsaram-me com fumaça como a um rato, e com zombeteira compaixão me deixaram correr como um animal selvagem, através de espinheiros e urze em chamas ao redor de meu lar profundo. Riram quando pisei nas cinzas quentes, e o vento carregou para longe minhas imprecações. Meus olhos vermelhos não reconheceram a senda; e só o que pude salvar foi um saco com pequenas ferramentas e, por baixo de um manto velho e esfarrapado, minha faca oculta em sua bainha negra, com runas de veneno na lâmina. Muitas vezes a afiei, cuspindo na lâmina até ela reluzir sob as cruéis estrelas em lugares ermos.
Assim privaram Mîm de todas as suas lembranças e de todos os alegres saltos e ímpetos do espírito, para fazerem gemas para os punhos de suas espadas, anéis para dedos ávidos, e luas e estrelas e adornos sem arte para os peitos de mulheres altivas. Permutaram-nas por pequenos reinos e amizades traiçoeiras; cobiçaram-nas; assassinaram por elas e obscureceram o ouro com o sangue dos parentes. Há um fogo nas lembranças dos velhos ananos, e emana uma força de suas mãos delgadas, que impele os homens à loucura, mesmo que não se deem conta disso.
Mas agora estou velho e amargo, e em meu refúgio nas montanhas selvagens devo reiniciar o trabalho, tentar capturar a reverberação de minhas lembranças antes que elas se desfaçam por completo. Ai, meu trabalho inda é bom; mas está cercado de feitiço. Falta-lhe o frescor, um véu se estende entre mim e as coisas que vejo e crio, como se as formas e as luzes se desfizessem em uma névoa de lágrimas. O que criei outrora eu vejo de relance, mas não aquilo que vi certa vez. Dizem que sou perigoso, repleto de ódio e insidioso, o velho Mîm, o pequeno anano. Se me agarram eu mordo com dentes negros ou esfaqueio no escuro, e nada pode curar a ferida de minha faca. Não se atrevem a se aproximar de mim; mas de longe disparam flechas em minha direção quando me atrevo a sair para contemplar o sol. Outrora não era assim, e não é bom que seja assim agora. O percurso do mundo se torna torto e duvidoso. O engano circula, seres surgem arrastando-se de lugares escuros, e sob meus dedos cresce o temor e não o encanto. Pudesse eu perdoar, talvez ainda conseguisse moldar uma folha, uma flor coberta de orvalho, como ele brilhava outrora junto a Tarn Aeluin, quando eu era jovem e sentia pela primeira vez como eram hábeis os meus dedos. Mas Mîm não pode perdoar. Ainda arde a brasa em seu coração. Tim-tom, tom-tim! Sem tempo para pensar!