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O Obituário de Tolkien – The Times (03.09.1973)

O The Times é um dos mais antigos jornais e noticiários britânicos. Foi fundado 1785 com o nome Daily Universal Register, e se tornou um dos veículos de notícia mais importantes do Reino Unido. Atualmente circula em quase meio milhão de leitores diários.

Em setembro de 1973, o jornal publicou o obituário da morte do Professor Tolkien. O texto foi recuperado e traduzido pelo mestre Ronald Kyrmse. Além disso, contém notas de tradução para nossos leitores.

Confira na íntegra o obituário, exclusivamente no Tolkien Talk.

 

 

PROFESSOR J.R.R. TOLKIEN

Criador dos Hobbits e inventor de uma nova mitologia

 

O Professor J. R. R. Tolkien, CBE [1], Professor Rawlinson and Bosworth de Anglo-Saxão em Oxford de 1925 a 1945, e de 1945 a 1959 Professor Merton de Língua e Literatura Inglesa, faleceu ontem aos 81 anos de idade.

Foi o autor de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis, dois livros muito apreciados e imensamente populares, que venderam milhões de exemplares e foram traduzidos para vintenas de línguas. Foi nomeado CBE no ano passado

John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892 em Bloemfontein, África do Sul [2], onde seu pai faleceu em 1896. A família retornou à Inglaterra, onde os anos de infância de Tolkien se passaram no que era então a região rural de Worcestershire, apesar de estar agora sepultada nos tijolos vermelhos dos arredores de Birmingham.

Foi ensinado pela mãe, da qual derivou todas as suas inclinações e seus conhecimentos precoces, linguísticos, românticos e naturalistas. Era à sua ascendência através dela, dos Suffields (originariamente de Evesham), que ele costumava atribuir aquele amor pelas Fronteiras Ocidentais [3] que se manifestava do mesmo modo nos estudos do merciano [4] (seu interesse filológico primário) quanto na linha élfica ou “hobbitesca” de sua imaginação. Naqueles dias ele tinha um amor “quase idólatra” por árvores e flores, e fome de romance arturiano, mitologia clássica, e especialmente George Macdonald [5].

Em 1903 entrou com uma bolsa (obtida graças aos ensinamentos da mãe) na King Edward’s School, Birmingham, de onde relatou muitas coisas boas e poucas ruins. Seu mestre de classe, George Brewerton (um “professor feroz”), o apresentou a Chaucer com a pronúncia correta, e lhe emprestou uma gramática de anglo-saxão; e R. W. Reynolds o apresentou à crítica literária. Em 1900 já havia sido recebido na Igreja Romana, juntamente com a mãe e o irmão, e por ocasião da morte da mãe em 1904 o Pe. Francis Morgan, do Oratório de Birmingham, se tornou seu tutor. Sobre o Pe. Morgan, Tolkien sempre falou com a mais cálida gratidão e afeto.

Em 1910 conquistou uma bolsa no Exeter College, Oxford. De acordo com os altos padrões da King Edward’s School, o prêmio era mais tolerável que louvável, e de fato Tolkien costumava se descrever como “um dos rapazes mais ociosos que Gilson (o Diretor) jamais teve”. Mas a “ociosidade” no seu caso significava estudos privados e sem auxílio de gótico, anglo-saxão e galês, e a primeira tentativa de inventar uma língua – de que falaremos mais abaixo.

Tornou-se residente em 1911. O Dr. Jackson ainda era Reitor, e o College [6] não teve tutor residente de clássicos antes da indicação de E. A. Barber. Este chegou tarde demais para ser de grande ajuda, e Tolkien só obteve uma 2ª classe nas Honour Moderations [7], pois tinha negligenciado um tanto os seus estudos em favor de “nórdico antigo, festividades e filologia clássica”. “Meu amor pelos clássicos” disse ele certa vez, “levou dez anos para se recuperar das aulas sobre Cícero e Demóstenes”.

Foi nesse período que começou a ser influenciado por Joseph Wright [8]; e já estava intensamente engajado na invenção da “língua élfica”. Esta não era simplesmente algo inarticulado e arbitrário, e sim um idioma realmente possível, com raízes, leis fonéticas e inflexões possíveis, no qual derramou todos os seus poderes imaginativos e filológicos; e, por estranho que possa parecer o exercício, ele foi sem dúvida a fonte daquela riqueza e concretude sem paralelo que mais tarde o diferenciou de todos os demais filólogos. Ele estivera por dentro da linguagem. Ele não fora longe com sua invenção antes de descobrir que toda língua pressupõe uma mitologia; e começou de imediato a preencher a mitologia pressuposta pelo élfico.

Em 1915 obteve uma Primeira Classe em Inglês. Sisam e Craigie tinham sido seus tutores, e Napier seu professor. Imediatamente após Schools [9] ele ingressou nos Fuzileiros de Lancashire. Em 1916 casou-se com Edith Bratt, que conhecia desde a adolescência. Em 1918 estava de volta em Oxford, dispensado do Exército por invalidez, e começou a lecionar na Escola de Inglês; E. V. Gordon esteve entre seus primeiros alunos.

De 1920 a 1925, trabalhou em Leeds, primeiro como Reader [10] de Inglês e mais tarde como Professor de Língua Inglesa. George Gordon, E. V. Gordon e Lascelles Abercrombie foram seus colegas, e parte do seu melhor trabalho foi realizado através da montagem de um próspero departamento de Filologia Inglesa, partindo de um começo modesto.

Em 1925 tornou-se sucessor de Craigie em Oxford, como Professor Rawlinson e Bosworth de Anglo-Saxão, e em 1945 deixou essa cátedra para se tornar Professor Merton de Língua e Literatura Inglesa.

Seu Vocabulário do Médio Inglês fora publicado em 1922. Sua edição de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (em colaboração com E. V. Gordon) seguiu-se em 1925; Beowulf: os Monstros e os Críticos em 1937; sua Conferência Andrew Lang (sobre Estórias de Fadas) em 1939. Tornou-se Hon DLitt [11] do University College, Dublin, e de Liège em 1954.

Suas pesquisas mais extensas foram sobre o dialeto dos Midlands Ocidentais [12], do período anglo-saxão até o do Ancrene Riwle [13]; nesse trabalho sua pupila de maior destaque foi a Professora d’Ardenne. Aposentou-se do professorado Merton ao alcançar o limite de idade em 1959, e mais tarde foi eleito fellow [14] emérito do college.

Durante os anos de 1925-35 ele foi, mais do qualquer outro indivíduo, responsável por eliminar a antiga cisão entre “literatura” e “filologia” nos estudos do inglês em Oxford, conferindo assim à escola existente sua têmpera característica. Seu discernimento singular, simultaneamente da linguagem da poesia e da poesia da linguagem, o capacitou para essa tarefa.

Assim, a linguagem particular e sua descendente, a mitologia particular, estavam diretamente conectadas com parte dos resultados mais intensamente práticos que ele obteve, ao mesmo tempo que, em privado, continuavam a germinar em contos e poemas que raramente chegavam a ser impressos, apesar de lhe poderem ter granjeado fama em quase todos os períodos exceto o século XX.

O Hobbit (1937) foi na origem um fragmento desse ciclo, adaptado aos gostos juvenis, mas com uma novidade extremamente importante, os próprios Hobbits. É duvidoso até que ponto ele se deu conta de que aquelas criaturas apreciadoras do conforto, nada ambiciosas e (na aspiração) nada heroicas encarnavam o que ele mais apreciava no caráter inglês, e via como mais ameaçado pelo crescimento da “subtopia”, da burocracia, do jornalismo e da industrialização.

Bem cedo eles exigiram ser unidos ao seu mito heroico, em nível bem mais profundo do que O Hobbit permitira, e em 1936 ele estava trabalhando em seu grande romance O Senhor dos Anéis, publicado em três volumes (1954 e 1955) e muitas vezes reeditado e traduzido. O destino irônico que liga a humilde felicidade dos Hobbits com a decisão de vastas questões que eles de bom grado ignorariam, e que chega a tornar a própria civilização momentaneamente dependente de sua coragem latente e relutante, é seu tema central. Ele não contém alegoria.

Estas coisas não foram inventadas para refletir alguma situação particular no mundo real. Foi o inverso; os eventos reais começaram, de modo horrível, a se conformar ao padrão que ele inventara livremente. Assim, aqueles que ouviram a obra crescente sendo lida, capítulo após capítulo, nos meses que se seguiram à queda da França, acharam-na tão relevante, tão severa e tão estimulante quanto a promessa de sangue, suor e lágrimas feita por Churchill. Ela se punha de través a todos os cânones contemporâneos da crítica, e seu sucesso, quando foi publicada, surpreendeu e deleitou o autor e seus amigos.

A espirituosa farsa de Tolkien, Mestre Giles d’Aldeia (1954), foi uma obra de tipo totalmente diverso.

Chegou ao prelo apenas uma fração dos poemas, das traduções, dos artigos, das conferências e das notas em que encontrou expressão seu interesse multifacetado. Seu padrão de autocrítica era alto, e a mínima suspeita de publicação costumava pô-lo a revisar, atividade durante a qual lhe ocorriam tantas novas ideias que os amigos, que esperavam pelo texto final de uma obra antiga, obtinham na verdade o primeiro esboço de uma nova.

Foi um homem de “camaradas”, não da sociedade em geral, e sempre esteve na melhor forma após a meia-noite (tinha um horror johnsoniano [15] de ir para a cama), e em pequenos círculos de amigos íntimos onde o tom era ao mesmo tempo boêmio, literário e cristão (pois era profundamente religioso).

Foi descrito como “o melhor e pior orador de Oxford” – pior pela rapidez e falta de clareza de sua fala, e melhor pela penetração, erudição, humor e “raça” do que dizia. C. L. Wrenn, R. B. McCallum de Pembroke, H. V. D. Dyson de Merton, C. S. Lewis de Magdalen, e Charles Williams estavam entre os que mais frequentemente constituíam sua plateia (e o interrompiam) em tais ocasiões.

 

Notas do tradutor
[1] Comandante da Ordem do Império Britânico
[2] Na verdade o Estado Livre de Orange
[3] No original Western Marches
[4] Dialeto do anglo-saxão
[5] Um dos autores pioneiros da fantasia moderna
[6] Uma das entidades que, reunidas, constituem a Universidade de Oxford
[7] Conjunto de exames ao final da primeira parte de alguns cursos de graduação
[8] Destacado filólogo de Oxford
[9] Etapa na formação oxfordiana
[10] Professor responsável pelo curso
[11] Doutor Honorário em Letras
[12] Região da Inglaterra
[13] Manual monástico do século XIII
[14] Membro acadêmico
[15] Referência ao pensador e lexicógrafo Samuel Johnson

Escriba mais perspicaz de Pelargir, é apresentador do Tolkien Talk, Editor e responsável pelos textos do site.