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[ARTIGO] O Senhor dos Anéis: A Saga de Frodo Bolseiro e o Mito do Herói

Por Júnior Nogueira.

A famosa obra de J.R.R. Tolkien, a trilogia “O Senhor dos Anéis”, foi publicada entre 1954 e 1955, sendo traduzida para mais de 40 línguas e alcançando a venda de mais de 160 milhões de cópias desde então.

A trilogia trata da história de Frodo, um hobbit (umas das raças de habitantes da Terra-Média, que é o universo onde se desenvolve toda a “mitologia” de Tolkien) encarregado de destruir o Um Anel, um anel mágico criado pelo grande inimigo da Terra-Média, Sauron, com o intuito de dominar todos os seres da terra, tornando-se, assim, o seu único senhor. A missão de Frodo é levar o Anel até a Montanha da Perdição, nos domínios do Senhor do Escuro, e lançá-lo nas forjas onde o próprio Sauron havia confeccionado o artefato mágico. Essa é a única forma de destruir o Anel e, por conseqüência, aniquilar os planos de Sauron de dominar o mundo.

A saga de Frodo possui elementos claros e ricos que podemos relacionar com os do Mito do Herói e com as concepções que C.G. Jung desenvolveu na Psicologia Analítica, especialmente acerca do caminho de individuação. A individuação era entendida por Jung como o processo onde o sujeito paulatinamente constrói-se como um ser único, alcançando uma singularidade profunda e tornando-se o seu próprio Si-mesmo (1984). É possível fazer algumas aproximações entre o caminho de Frodo até Mordor, as contradições, lutas e vitórias deste caminho, e aquele trilhado pelo Herói presente nos mitos de todas as culturas, e até mesmo aproximando essas relações do nosso próprio caminho de individuação e amadurecimento humano.

c4863720af8837de38df14155cfff3afDe forma resumida, a história de Frodo seguia num ritmo pacato, como a de todo jovem hobbit, até que ele recebe como herança do seu tio Bilbo Bolseiro o Um Anel de Sauron, que Bilbo havia encontrado nas cavernas de Gollum há alguns anos. Com este fato inicia-se a demanda de Frodo pela destruição do perigoso Anel, e aqui podemos destacar um ponto onde a saga de Frodo difere daquela apresentada normalmente no Mito do Herói.

Enquanto no mito o herói é geralmente apresentado como filho de nobres, reis ou deuses, portando poderes sobre-humanos, Tolkien imaginou Frodo pequeno (no sentido simbólico e literal), sem ascendência nobre e sem qualquer tipo de poder especial, a não ser sua extraordinária resistência à influência maligna do Anel. No entanto, como o heróis dos mitos, Frodo se põe a caminho, a fim de cumprir sua missão.

Sair do Condado, nesse contexto, tem um significado profundo. Segundo o próprio Bilbo afirmou para Frodo: “É perigoso, Frodo, sair porta à fora, você pisa na estrada e se não controlar seus pés, não há como saber até aonde você pode ser levado”. O caminho é típico do Mito do Herói, pois é nele que o processo de individuação chega à sua plenitude.

Gil-gilads_gearEm todo mito épico, com narrativas de guerras e disputas pelo poder, não podem faltar armas e, particularmente no Mito do Herói, estas são portadoras de poderes mágicos. No Senhor dos Anéis, além de ser auxiliado por seus fiéis companheiros da Sociedade do Anel, Frodo ainda recebe o suporte de armas e utensílios portadores de virtudes especiais, providencialmente escolhidas para o cumprimento da sua missão: a espada Ferroada, forjada pelos Elfos, leve e habilidosa, cuja lâmina fica azul com a aproximação de orcs; uma capa élfica capaz de torná-lo imperceptível nos perigosos territórios de Mordor; um frasco de vidro do qual emanava a luz da Estrela de Eärendil, com o qual Frodo vence a escuridão das cavernas e o poder de Shelob (ou Laracna); e também o formidável pão de viagem dos Elfos, o lembas, cuja força nutritiva era capaz de sustentar o viajante por vários dias.

untitled21Dentre os companheiros de viagem de Frodo, o mago Gandalf tem lugar especial, encarnando a figura que nos mitos podemos perceber como o “velho sábio”. Segundo Müller (1987, p.11), a figura do velho sábio “(…) representa, portanto, uma sabedoria humana profunda e inconsciente, que se torna ativa quando uma pessoa com suas atitudes e posturas habituais entra em um beco sem saída”. O papel de Gandalf na missão de Frodo é exatamente o do sábio que presta auxílio com seus conselhos e intervenções providenciais, não só com relação à demanda pela destruição do Anel, mas também nas dúvidas e medos de Frodo com relação ao seu próprio caminho interior.

A obra O Senhor dos Anéis também nos permite aprofundar o tema do irmão-sombra, muito abordado também no Mito do Herói. Na demanda de Frodo, o irmão-sombra apresenta-se em duas facetas: na relação de Frodo com o Anel de Poder e no seu encontro com a criatura Gollum (ou Sméagol).

O conceito “irmão-sombra” pode ser explicado como sendo um tipo de duplicidade de caráter geralmente apresentado pelo Herói que, muitas vezes, em suas palavras e atitudes, reflete justamente o mal que ele se propõe a combater. São aqueles traços psicológicos inconscientes que emergem na personalidade do Herói, geralmente em situações de conflito.

Nas palavras de Müller (1987, p. 31):

Essa duplicidade de sua primeira situação de vida corresponde à duplicidade do seu caráter: ora ele é o herói luminoso, radiante, amigável, defendendo a conservação e o desenvolvimento de estados vitais positivos; ora ele é capaz de se tornar uma pessoa calculista, colérica, egoísta, sedenta de poder, violenta e pronta para se enfurecer de maneira cruel e sádica por uma “boa” causa, tal como as forças inimigas que ele se propôs superar.

Ao assumir o fardo de carregar o Um Anel até o reino do Senhor do Escuro para lá destruí-lo, Frodo começa a, paulatinamente, sofrer os efeitos da influência do Anel sobre si. E um destes efeitos é justamente o vir à tona uma personalidade totalmente outra, que o toma em determinados momentos de sua jornada. De personalidade tranqüila e afável, Frodo passa a apresentar acessos de cólera, mesmo contra seu grande amigo Sam, como também de desespero ante seu próprio destino. E chega, finalmente, a manifestar um desejo incontido de reivindicar o poder do Anel para si.

Screenshot_8Personificando a figura do irmão-sombra na demanda de Frodo, Gollum é o exemplo de uma criatura arruinada pelo poder do Anel e totalmente imersa numa relação ambígua com o mesmo: ele ama e odeia o seu “precioso”, e na tentativa de tomá-lo dos cuidados de Frodo, Gollum é capaz de toda sorte de atitudes baixas e traiçoeiras. Percebe-se, porém, que também Frodo estabelece uma relação ambígua com o próprio Gollum, pois ao mesmo tempo em que sabe do que a criatura é capaz de fazer para retomar o Anel, sente-se atingido por um estranho sentimento de compaixão ante a situação miserável de Gollum.

Frodo, de certa forma, reconhece-se e identifica-se nos traços sombrios de Gollum, que também portou o Anel por algum tempo. Gollum é seu irmão-sombra, como “um irmão gêmeo ou inimigo igualmente forte” (Muller, 1987, p. 32). Esse fato torna-se mais emblemático ainda quando se descobre que Gollum também é da mesma raça de Frodo, um hobbit. Além de ter este papel no confronto de Frodo com sua própria Sombra, Gollum também terá uma participação fundamental na conclusão da demanda do Anel. Gollum encarna a própria sombra de Frodo, alguém que além de ancestral dos hobbits foi arruinado pelo Anel, destino que ele mesmo, Frodo, pode vir a partilhar, caso caia sob influência do artefato. A Sombra não causa apenas repulsa, ela seduz e atrai também, e por isso a sua influência.

Outro tema comum ao Mito do Herói e encontrado na história de Frodo é a descida aos infernos, ou ao mundo dos mortos. É o encontro com a morte, ou com os aspectos inconscientes da Sombra, os quais precisam ser integrados ao Si-mesmo para que o processo de individuação possa realizar-se.

Podemos considerar todo o caminho de Frodo rumo a Mordor, até as profundezas da Montanha da Perdição, como um caminho de descida, não só a nível geográfico, mas também a nível espiritual. Neste caminho Frodo encontra e se defronta não somente com inimigos que lhe são exteriores, mas também com aqueles que habitam o seu íntimo: seus medos, as questões ligadas ao seu lugar de nascença e à convivência com o tio já idoso, suas inconsistências de caráter (potencializadas pelo uso do Anel).

O processo de descida aos próprios “infernos interiores” e de confrontação com a própria Sombra não é fácil. Müller (1987, p. 42) diz que:

Esses aspectos escuros e assustadores do nosso ser — os “guardiões do limiar” — intimidam a maioria das pessoas no caminho em direção a si mesmos. Em vez disso, elas prefeririam lançar-se de imediato para “cima” rumo ao céu, com a ajuda de procedimentos impessoais, perdendo-se então a si mesmas.

O próprio Frodo experimentou vivamente e expressou para o seu amigo Sam este encontro interior com a morte, quando já aos pés da Montanha da Perdição e prestes a concluir a missão que lhe fora confiada:

Nem sentir o gosto de comida, nem a sensação da água, nem ouvir o som do vento, nem me lembrar de árvore ou grama ou flor, nenhuma imagem de lua ou estrela me resta. Estou nu no escuro Sam, e nenhum véu se coloca entre mim e a roda de fogo. Começo a vê-la até com os olhos despertos, e todo o resto desaparece. (O Retorno do Rei: “A Montanha da Perdição,” p. 212)

Podemos considerar como o ápice desta descida de Frodo ao reino da morte o fato de, já no interior da Montanha onde o Um Anel fora forjado, o herói sucumbir ao poder do Anel e reivindicá-lo para si, negando-se a destruí-lo. Acontece, então a morte não só da força de vontade do herói em cumprir sua missão salvadora, mas também de toda a esperança de redenção. Exatamente neste instante a criatura Gollum arranca da mão de Frodo o dedo onde estava o Anel e, levado por um êxtase de alegria pela conquista do seu “precioso”, acaba por cair no fogo, destruindo-se a si mesmo e ao objeto do poder de Sauron.

At the Cracks of Doom, by Ted NasmithNote-se que, de fato, é a Sombra de Frodo (Gollum) que destrói o Anel: a descida aos reinos mais sombrios, para Frodo, significava que ele iria para o “lar do Anel”, onde o artefato é mais forte, e a tal ponto o é que acaba por dobrar e conquistar a vontade de Frodo. Mas, então, acontece a grande reviravolta da história. Aquele que já havia sido corrompido quase que por completo pelo poder do Anel, ou seja, o Gollum, no momento final, realiza plenamente o papel da Sombra: aquela que já abraçou tudo o que foi deixado para trás e que acaba redimindo o herói.

Com esta inesperada e providencial vitória da Sociedade do Anel, podemos ver aí um novo nascimento para o herói, para Frodo; após descer aos infernos do mundo e de si mesmo, ele retorna com os traços sombrios de sua personalidade já integrados; retorna para a vida criativa e para o Si-mesmo. Nas palavras de Müller:

O novo homem resultante da morte simbólica do Eu não é eterno, nem imortal, mas um homem transformado pela morte. É um homem que desistiu de fugir de si mesmo e da morte, despertando por isso para uma nova vida, com uma nova vitalidade. Ele percebe o milagre e o presente da vida em todo o seu paradoxo e beleza, e começa a celebrá-la com amor. (1987, p.43)

Tendo chegado à plenitude o processo da individuação, o sujeito pode abrir-se sempre mais a uma vida inteiramente criativa e ser cada vez mais ele mesmo. Ao cumprir sua missão, Frodo não retorna mais o mesmo para o Condado. Na verdade, Frodo não retornaria ao Condado para ficar, pois as marcas deixadas pela posse prolongada do Anel só seriam curadas em outras terras, as Terras Imortais, e para lá ele parte da Terra-Média. Podemos fazer, então, uma analogia deste fato com o que Jung denominava “preciosidade de difícil acesso”, ou seja, simbolicamente Frodo teria atingido “a personalidade unificada, a identidade consigo mesmo e com a própria essência” (MÜLLER, 1987, p.49).

TN-The_End_of_the_AgeOs mitos exercem ainda hoje um fascínio sobre nós porque dão conta de realidades comuns à nossa vida cotidiana e ao nosso próprio caminho em direção à unidade interior e integração plena do nosso ser. O caminho do Herói é também o nosso caminho, e sua meta se confunde com a nossa.

Do Condado a Mordor, de Mordor às Terras Imortais, todos somos convocados a protagonizar nossa própria missão heróica, dispondo do auxílio de amigos, “sábios e magos”, utilizando as armas de nossos recursos internos e energia vital, morrendo e ressurgindo, para chegarmos à vida plena que é o caminho criativo do ser humano através da vida.

Referências

  • JUNG, C.G. Psicologia do inconsciente. São Paulo: Editora Vozes, 1984
  • MÜLLER, L. O Herói – Todos nascemos para ser heróis. São Paulo: Cultrix, 1987
  • O Senhor dos Anéis. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Senhor_dos_An%C3%A9is Acesso em: 30 de out. 2014
  • TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Escriba mais perspicaz de Pelargir, é apresentador do Tolkien Talk, Editor e responsável pelos textos do site.